SOULAGES
I
ECO (EGO)
A recordação de um ano
mau 2009
uma
fissura
numa
tatuagem
sobre uma película transparente
já rasgada.
A luz perdeu-se ou foi modificada.
A
mudança nestes olhos castanhos
alterou
a dor e no seu acordar
lento
e forte
a noite surgiu.
Recorda-te corpo o negro ano de
2009
e retrospetivamente visita o
Pompidou
em
busca do outro
das
linhas
negras
do gesto. Dos amantes nas
longas escadarias.
Imprecisões
digitais em pedra.
O arroz e o milho partilham em
comum a capacidade de ser o todo
na junção do particular.
(corta esfola atira repinta)
Gota
poema
e
toda a memória e emoção
será
recuperada
ou
criada.
Este é o poema que diz
a
negação do esquecimento.
Pedra negra
corpo e matéria putrefata
mesa e centro
perante os olhos. Centros de luz
negra.
II
VIAGEM
IMAGINÁRIA A RODEZ
Se não fosse o tom de uma outra língua
na
boca de gentes desconhecidas
esta
seria a minha cidade.
Os mesmos jeans as mesmas
t-shirts e aquele cabelo no ar
com gel ou cera barata
a
mesma pressa em comprar o
jornal
numa sexta-feira.
[Não! Não! Risca!]
A correria só pode ocorrer após 83
e não aqui
nesta paragem de autocarro de
1919:
Há
uma mulher sozinha a segurar
um bebé
pareceu-me
ver o seu dedo
sujo de grafite negro.
A guerra terminou mas a forma
ainda demora a passar.
Vejo
aleijados e moribundos
esquecidos na
valeta.
Toda
e qualquer criança deve
ou
dormir ou hibernar
nesta
realidade fria.
(milhões e milhões de mortos!)
Ontem é o hoje eterno
eterno e repetido
seja em Rodez ou em Damasco.
Choram os homens esquecidos
e mendigam a sobrevivência
dos seus dias.
Dorme criança
brinca
amanhã com o crayon
e
esquece esta figura que não
conheceste
a não ser pelas
histórias
que ouvistes.
Ainda bem.
Menos uma dor neste teu coração
de tinta chinesa.
Sonha e esquece esse ano de
1919 não de paz mas de miséria.
Hoje terás o leite da tua mãe
amanhã
terás
a
terra
negra
só
tua.
Negra
Soulages.
III
ENTREVISTA i
Podem as duas mãos
seguir em frente sozinhas?
Não! Todo o meu corpo é
um pincel.
E a tua boca?
Apenas
um pelo perdido
no
encaixe da tela.
Qual
encaixe?
O teu perante a tua boca
obra.
IV
ENTREVISTA ii
-Quel est ton corps?
-Ton visage?
-Porquoi le noir?
-Porquoi la nui?
Nous sommes Matière qui
parle avec la origin du monde!
-Courbert?
-Oui!
V
1944: AGONIAS
Klee afirmara ao seu
antigo amigo que
na natureza o ponto cinzento
do sol era a busca
irremediável das
noites.
Sem medo
Klee dizia apaixonadamente
Ymages com y.
Morreram
os dois pais e os
olhos
do invisível eram já
narizes
escurecidos pelo frio
dos
dentes. Cravados os pulsos
rente
aos sons possantes as
Imagens
do interior coloriam aquilo que a
ânsia
(sem acento) ditava. Pequena
noite
de morte e de reconhecimento: 1944.
VI
36 HORAS NO
MUSEU FABRE
Cabelo negro.
Olhar
sobre o espetador.
A
presa do tempo rompe
à
nossa frente.
A total escuridão
desse rosto
entre a indiferença e a
perturbação.
É
o teu antigo rosto
Coubert!
O corvo grita o teu nome
por baixo do arvoredo
do castanheiro mais alto:
COURBERT
grita
e o eco reproduz
SOULAGES.
VII
1946
La guerre est finie. Je peins.
La
vie c’est moi Soulages.
Je
peinte
je
écrit ton nom sur la
peau
et
sur
la couleur de la douleur.
Je
dit:
L’
avenir viendra ma
petite
inexistence.
Je suis ton oeuf noir_________.
VIII
ENCONTRO NO CAFÉ
Hartung só tem uma perna
mas todo o seu corpo é
uma bola de fogo azul.
Os seus dedos possuem mil pincéis
como se de mil virgens se tratassem.
Sorriu-me hoje no café
na
despedida disse-me:
eu
sou o gesto linear oblíquo
tu
a linha grossa vertical que insiste em
ca
i
r.
O azul nada me diz
mas encontrei no seu olhar
o oiro de que preciso para dar à
minha
cor a linha da esperança.
A
nossa esperança!
Talvez um dia consiga fundir o
oiro ao
negro.
Eis
o meu programa.
IX
A TELA NÃO
MAIS EXISTE
Porquê pintar uma tela
num
cavalete se
tenho
todo o chão do mundo?
Pollock descobriu que o pintor é
um
pincel sobre
o
chão do mundo.
E eu digo que o homem é um
pincel
sob o céu.
Um enorme pincel num
espectro temporal infinito
onde o teu e o meu corpo
são apenas poeira de poeira de
poeira
de
poeira de poeira de poeira da
poeira
do Universo.
X
OS OLHOS DE COURBERT
Retrata-te ao espelho
e
não esperes a
ajuda
da multidão para
levar-te
ao pódio do mérito.
Isto que pintas é preguiça
segundo os teus contemporâneos e
mesmo
que não fosse diriam que
o
poder manchou-te as mangas
imaculadas
do branco
mesmo quando
negaste jantar com o poder.
Foram
quantos os dias de arrogância?
O atrevimento daquela exposição
realizada algures em Paris – Meca
da boa
Pintura e da anamorfose histórica
–
lentamente
pintas
esse negro exagerado. Matéria Negra.
Outra matéria
Negra
SOULAGES!
Vítor Teves 2019-2020 /1ºversão
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