A HERANÇA
Salve Regina, Mater misericordiæ
Vivaldi RV 617
a Duarte Melo
O poeta que mais amava
trazia na sua vasta obra
um invisível apêndice para
quem o lia com a maior dos
prazeres: uma longa lista
de inimigos pegajosos de
cromos e gente mesquinha.
Gente inútil que à obra se foi
colando e amarrotando com
um bafiento bafo não para
estudá-la ou senti-la mas
para apenas pisá-la com
mais uma bota de cano alto
dessas que os lavradores
usam no campo sem que o
dom das palavras conseguisse
desprender-se e chegar à real
luz. O monte de esterco
um enorme e escuro esterco
acumulara-se de tal ordem
que a apêndice era pesada
absurdamente pesada era uma
pedra de Atlas e Sísifo juntas.
Era uma bolha enorme que
crescera muito antes de eu
ter sequer nascido. E foi
abraçando o poeta maior que
abracei rancores milenares
salas e salas de jogos de puro
esterco desde as salas nobres
da Academia até aos bancos
do jardim da cidade velha.
Eram venenos antigos e eu
sem saber continuava a ler
sem saber que ao ler atraía
todas as invejas do oceano.
E tudo porque me fora dado
um aperto de mão pela mão
que escrevia o que amava.
E vieram os inúteis velhos os
invejosos os novos gritando
acusando-me de aproveitar tudo
aquilo que nunca quis aproveitar
a não ser o franco interesse
pela obra que amava. E lendo
fui resistindo resistindo e mais
do que isso impondo a dobra
ao meu tempo para que a poesia
não se condenasse a um mero
êxtase histérico de sonâmbulos
de gente inútil à procura na terra
suja o alto e perdido Absoluto -
a Palavra eternamente riscada
nas ainda frescas câmaras de gás.
E resisti com os pés com a
minha coluna hirta que não se
verga a leis impostas do gosto.
E as minhas mãos em ferida
resistiram resistiram às várias
investidas dos velhos inimigos e
de novos inimigos que atando
trouxeram artimanhas para o meu
ar livre ferir. E tentaram cada um à
sua maneira usar-me para chegar sem
meu acordo ao Palácio da Ventura
aquele que nunca me ofereci
para entrar porque sempre o meu
interesse foi puro como diz kant
naquela passagem que já devia
saber de cor. Sempre o certeiro
canto da beleza desinteressada!
E em tudo o esterco novo e
velho viu malícia puro ato de
vender t-shirts em hora de
ponta. E em tudo o esterco viu
artimanhas mil perícias e sonhos
de império. Quando na verdade
(esta tão doente palavra) apenas
tudo foi enredado em tristes
pergaminhos de falsos nomes.
E herdados os velhos inimigos
junto aos meus próprios inimigos
a bolha cresceu até à abóbada
celeste sem que Giotto fosse
sequer chamado a fazer um triste
depoimento em minha defesa.
E fechando os olhos num
segundo tornei-me em tudo
aquilo que de pior existia à
face da terra. Como se o
mais profundo pecado fosse
por minha mão ou boca criado.
A fonte primeira de todos os males
à face da terra desde as labaredas
da cidade à fome desde a pobreza
da educação nacional à morte da
venda de livros em papel. E
porque gostava de três coisas
eu era o porco o snob o alvo fácil
sem digno sobrenome a abater.
Carne e joguete entre sorrisos
insossos na oca Academia até à
ideia de que vivia sobre a capa
de uma oferta generosa que recebi.
Fausto ou Menfistófeles qual o
meu nome? Jacob apenas Jacob!
Vítor Teves
26.02.2021
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