AS  MIOPIAS DE TAMPERTO 

              

Porventura sou eu, Mestre? 

Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste

São Mateus 25:23-5


                          

                                                                  I

                                         COMO SE FOSSE POR ELES


      Não sou mulher de enredos, como tu sabes, mas sabes quem vem por aí? Aquele. Aquele que não posso dizer o nome. Xiu, está calada! A criatura vem a pensar que isso aqui é o paraíso, mas vai-se dar mal. Mas vai-se dar mal! Olha, por mim, não lhe estendo a mão! Tu leste aquilo que ele escreveu. Ai não? Que isso aqui era a decadência total, onde já se viu isso? Nós temos tudo, temos um shooping, esta avenida marginal que nunca mais acaba, temos até um Arquipélago aqui perto! E ele chama-nos decadentes? Ai, não se admite uma coisa dessas! Ele nunca disse isso? Ai não disse? Não disse? Então o que foi que ele disse? Eu não li nada, quem me disse foi o Jorge. Ah, foi isso que ele disse? Ah, pois realmente, se foi isso que ele disse, ele tem razão! Toda a gente sabe que ele tem razão! Mas, Ivelina, não vou com a cara dele, nunca o vi, mas não gosto dele. E depois, Ivelina, aquilo é poesia? É mulher, tu está calada para aí! Eu não o conheço, nem quero conhecer. Aposto que vem todo empruado por aí. Não há pachorra! Que fique pra lá! 



                                                                 II

                                   PRIMEIRO INVENTÁRIO INSULAR - TAKE 1


      Onde está esse artista que ninguém conhece? Ainda não o vi na Cristina, nem no Goucha!


       Que petulante! Não nos veio beijar a mão insular. Sobretudo a minha, eu que sou o bispo insular das letras insulares! Sem o meu carimbo na testa não será ninguém! Faça-se a água e o sol!


       Epifanias, epifanias! Já eu não faço epifanias. Este meu pulso está torto de tanta reescrita e, claro, de muita punheta, não fosse eu um verdadeiro punheteiro em fase de crescimento.


       Cor? Eu quero lá saber de cores! Essa insignificância de idiotas! As letras são superiores, toda a gente sabe disso! Que se entretenha lá com a cor! Já dizia Salazar, o meu avô e o meu pai: Ordem e Letras, sobretudo na sopa!


           Olhem só o tom de petulância! Foi chatear o Camões, coitado! Vai descobrir a pólvora! Mas esta já foi descoberta aqui na ilha pela mão do novo Supremo Líder. 


                Acordou ontem e bateu com a cabeça! Ou terão sido dois tiros na tola?


          Poesia rima, e só rima, com gaveta, a Horaciana, claro. É isso que ensino nesta minha Academia (Militar) Insular. Açorianinhos de Barcelos! Uns atrás dos outros, em fila, como convém à máquina e à Ordem Púpica! 


               Daqui do Faial parece uma formiga com dois cornos de vaca. Traz em vez da rabiça um chicote, é mesmo o Diabo! Como a lupa está invertida será que vão reparar nesta minha frase?


      Neste texto de hoje, neste jornal que amanhã servirá para embrulhar a loiça, escrevo manifestos de limpar o cu contra tão impertinente personagem. Mas o que realmente devia fazer, para alegria da minha consciência, era escrever, pedir um revisor decente, enfim! Eu estou Aqui e existo!


      Maricas! Dá para ver por esta passagem, por estas duas linhas, que é um promíscuo barato. Isso é mera biografia, logo se vê que é mera biografia, um gatafunho, uma mera remela no olho. Se ao menos fosse, como eu, neto, pela parte da mãe, de poeta falecido! Oh, isso SIM! Por falar nisso, para quando a minha coroa de louros em ouro? Aquela que afogar-se-á diretamente no mar.


                  (...)

        

                                                                III

                                            A MÁQUINA DO MUNDO


       A inveja, todos nós sabemos, é um dos mais antigos bens da humanidade! Digo bens porque ela é a máquina da criação do Mundo. E, claro, da rivalidade, da intriga, da maledicência, o ponto inicial para falar mal de alguém só porque SIM! Satanás é realmente um bicho que ferra as patas e as mãos dos homens de letras. Andávamos nós quietos, mortos, cobertos de mofo sem que ninguém nos acendesse uma faísca, sem que ninguém nos desse um ossinho a roer diariamente. Ah, Satanás, finalmente, finalmente! 


                                                         

                                                               IV

                                                       TAMPERTO 


    Tamperto era um corredor de maratona, um consagrado pelo tempo, que vivia numa pacata cidade. De manhã levantava-se cedo e “corria 25 km” pela cidade. Começava na ponta leste da avenida marginal e terminava, já no fim do dia, no outro extremo da mesma avenida. Todos o conheciam, era um símbolo da cidade, mas todos o mentiam: As tuas corridas são essenciais para manter o trânsito em circulação nesta cidade! És puro sangue! Até que um dia um miúdo, vindo do campo, esbarrou no velho Tamperto que, em esforço, ia tremendo pela cidade. Foi na altura em que o miúdo lhe disse: Devia descansar! Sente-se aqui no banco e conta-me a sua longa história. Ouvindo isso, Tamperto gritou: A mim ninguém dá ordens! Sem mim esta cidade não anda! E empurrando o miúdo continuou na sua ilusão, na ilusão de que seguia no quilômetro vinte, quando na realidade só dera cinco passos. 

     Primeira moral da história: nem todos os velhos são amáveis! Segunda moral da história: é preciso saber morrer com dignidade! Terceira moral da história (esta roubada a Dostoevski): o cemitério está cheio de gente Ilustre!



                                                                 V

                                     PRIMEIRO INVENTÁRIO INSULAR - TAKE 2



       Isso de ser poeta e artista ao mesmo tempo é o mesmo que ser mecânico e lavrador ao mesmo tempo, não existe! É tudo arrogância. É tudo um circo noturno! 


      O sono anda sobrevalorizado! Eu nunca escrevo com o corpo! Vou deitar-me sempre cedo, escrevo a primeira frase e os gatos é que fazem o resto. Morfeu? Quem é esse?


      É tudo uma ambição desmedida! Nunca se viu tal coisa. É por isso que o vemos constantemente na televisão, na rádio, no jornal, no telejornal. Ai não? Não interessa! É ambição desmedida na mesma!! Onde já se viu publicar poemas todos os dias? Quem pensa que ele é? Isso é negar o mito supremo da poesia! Não pode ser! Poesia é ilusionismo! Não se revela os truques, há que repetir a eterna lengalenga, é a Lei!


     Aristocratas decadentes, nós? Nós!? O meu pai foi marquês, minha mãe menina de recados que fazia broches ao patrão, mas aristocratas mesmo nunca fomos, apesar do meu sangue ser levemente azul! Eu sempre que vou à missa deixo uma moedinha ao mendigo, sou tão boa pessoa! Aristocrata decadente eu?


      Foi tocar no Nemésio outra vez, e no Anthero! Imperdoável! Aquele rol de epígrafes, é tudo o que se aproveita. Aquilo e aqueles rabiscos que ninguém percebe, eternos cubismos!!! Já não há artistas como antigamente! Uma vaquinha, um jarro de hortênsias, um prato de malassadas, isso é que era!


       Poesia, Pufff, aquilo é poesia? Eu também fazia aquilo! A fazer o pino, eu escrevia aquilo! Aquilo e a sanita branca que aparece em todos os museus! 


     É tudo ódio já repararam? Mesmo ódio, puro ódio! Eu que sou botânico, especialista sério, consigo ver pelas palavras que usa que aquilo é puro ódio! Até consigo imaginar a sua cara a escrever aquilo, vermelha como uma begônia. É um ódio de quem veio para queimar a avenida marginal toda, de uma ponta a outra! Nunca o vi, mas é o Diabo, o Diabo (com letra grande) em pessoa! 


       Um populista barato, é o que é! Antigamente eu escrevia cronicas comparando o casamento gay com o sexo entre cães vadios, mas nunca fui populista! Desde que fui sagrado no sangue divino de Lisboa, nunca mais escrevi um palavrão! Estou ungido! Daí esse meu tom de padreco a dormir no altar. Detesto esses populistas baratos que voltam para infernizar as ilhas. 


           Eu é que sou o verdadeiro Presidente, desculpa! Poeta Insular! O rei do Absoluto, a palavra da luz eterna! Não partilho o pódio da Poesia, ora essa! Ele é só meu, só meu! My precious! My Precious! 


                     (...)


                      e o rolo do papel higiénico continuava a ser desenrolado, para que a cidade da grande e bela avenida não mais esquecesse as injúrias proferidas! 

                         

                                      Quanta sujidade esconde a beleza? 



                                                              +++

                                                               

                                       EPÍGRAFE #2021 OU A LIÇÃO #1

                                  “Ama o teu próximo como a ti mesmo!”


                                                                +++




                                                                 VI

                                           SEGUNDO INVENTÁRIO INSULAR 


     Tu és terrível, és um corisco! Admiro essa tua coragem!


             Li o teu texto, ri-me imenso com ele!


     Tu és muito amável! Muito obrigado!


            Podes contar comigo!


     É um presente! Enganaste a cidade e o país inteiro! Afinal, és muito normal!


        Temos, como tu dizes, que animar o ambiente e juntar as pessoas. Trocar ideias, metê-las a pensar nas suas ideias fixas, nos seus preconceitos, nas suas ladainhas instituídas.


     Devia, como dizes, haver maior separação entre o texto e a pessoa! E, como também dizes, mais vida nos textos! 


    Admiro a tua capacidade de fazer mil misturas e, ao mesmo tempo, esse teu lado engraçado de tudo esmiuçar em cinco segundos.


       Segue o teu percurso, o teu instinto e ignora quem não interessa!


      Isso é tudo açorianite aguda! É uma praga!


    Gosto dessa tua forma de pensar nos outros, nessa tua empatia para com os mais fracos, esse olhar comunitário que se projeta no futuro. A par disso, o teu fácil gozo aos endinheirados, esses fúteis míopes de espírito! 



                                                                 VII


                                                  EDUCAÇÃO INSULAR


      Michael Krebber, certo dia, encontrou-se com Kippenberg no café e contou-lhe a seguinte anedota sobre Sigmar Polke:_____________! 

Kippenberg não achou piada, 

                                               mas eu fartei-me de rir! 

                                            

                                                     

                                                                  VIII

                                    CONSIDERAÇÕES SOBRE LITERATURA

                                                 EM JEITO DE MANIFESTO 


      Nada é puro: o nosso Eu, o nosso Corpo, a nossa Memória, a nossa Cidade, a nossa História, a História da nossa Literatura, o Mundo, o Universo.

Tudo é mutável. Tudo é impuro, híbrido, mistura. 

       Há dois tipos de mistura: a da inteligência e a da estupidez.

Cabe ao bom escritor saber misturar e ao bom leitor saber ler a mistura.

       Aristóteles prescreveu, mas nós somos livres para recusar o que prescreveu.

Derrida desconstruiu e nós somos livres de o des(cons)truir.

        A Literatura não está a morrer, está, sim, em mutação. Tudo é mutável!

A Literatura - a poesia - jamais poderá subjugar-se a leis imutáveis. Todo o seu corpo é mutável e só obedece à Lei da Liberdade e da Força Interior dos seus reais criadores.


Se a Literatura Atual morrer, tal não significa que a Literatura Morra! Disse Homero.

        Seremos capazes de sobreviver à morte da Têmpera? Tudo é mutável!


                        Chupar espinhas pode ter mais sabor que comer um bife!



                                                                 IX

                          DESENHO AUTOBIOGRÁFICO PARA FINS POLÍTICOS


                                                  [       Censurado!      ]



                                                                  X

                                                             LADO B


      Ai Ivelina, uma jóia de pessoa! E quando se ia embora até disse: Prefiro ser melhor pessoa do que bom poeta ou outra coisa qualquer. Estou aqui de passagem, faz mais falta boas pessoas! Os livros, esses, não passam, em primeiro lugar, de papel! Um papel com um papel primordial: abrir mentalidades. A mim só me interessa um poeta com abraço, se não tiver abraço, por mais que jogue xadrez, não me interessa, não é um poeta.

       E, Ivelina, deu-me isto. Olha, não é lindo?

     Há coisas que, nós açorianos, não merecemos. Sabes o que é, Ivelina? Doçura, Amabilidade e Despojamento num Nó. 


                                                                  XI


                                                BEM-AVENTURADOS @S...


Bem-aventurados 

os que regressam à terra.

Ao sacrifício da entrega

e ao esquecimento. 


Bem-aventurados

os que pernoitam na

morte pois deles é

o reino dos véus! 


                                                                 XII


                              PRIMEIRO INVENTÁRIO INSULAR  - TAKE 3 


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                                            ***


POST-SCRIPTUM


Noé depois de abrir a Arca

nunca mais foi convidado para a ceia do Senhor.

Aquilo que era vista como um castigo, era para ele

uma salvação.


    Ribeira Grande

13-.02-07.21




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