O
PICO & A DÉCIMA ILHA
ao Rei dos Necromantes Insulares
Escrevo do Porto. Terry, essa máquina
elétrica, no melhor dos sentidos, acaba de me enviar uma mensagem pelo facebook
a relembrar-me que ainda não enviei o texto sobre as minhas impressões do Pico.
Para um rapaz “rápido”, como eu, escrever uma página sobre o Pico não seria nada
difícil, não é? Pois é, mas aquilo que seria muito fácil, acabou por se revelar
difícil. Comecei por usar a palavra “rápido” entre aspas porquê? Simples:
porque tornou-se, nos últimos anos, muito aflitivo para determinadas pessoas,
sobretudo as que vivem nos Açores, que alguém escreva um poema por dia ou passe
de um caderno para o outro. Aquilo a que chamam “rapidez” não é mais nada do
que trabalho diário e constante de manhã até à noite. Há assim, como podem ver,
uma diferença de percepção: a) para uns a rapidez é atroz e como o estilo é
direto tudo é “automaticamente” feito em cima do joelho, sem qualquer
“trabalho”, ou seja, aqui estamos perante um mero reflexo de um senso comum barato,
daquele que se encontra ao virar da esquina; b) para outros, os mais lúcidos, o
trabalho constante é reflexo de facilidade de estar em diferentes domínios, ter
tempo ainda para ir à praia, à esplanada, ao museu, ao Pico (imaginem só!), etc.
Este último reflexo é de alguém que percebe que há um entendimento
contemporâneo de arte, ou seja, uma estrita ligação entre Arte e Vida. O ponto
ao lado, o ponto a, não me interessa!
Ser excessivamente rápido é não sentir as
coisas, não absorver as coisas e, parecendo que não, isso nunca me interessou.
Nunca me interessou ser rápido! Constatar isso é o mesmo que dizer que um
estudante de “História” é, por natureza, um preservador da “História”, seja ela
qual for ou onde for. Há, creio, uma confusão generalizada entre a ideia de
“rapidez” e a de “impulso”, são palavras que parecem quase sinónimos nos dias
de hoje mas na realidade são bem diferentes. Um impulso pode não ser rápido, um
impulso pode ser trabalhado, um impulso pode ser (descoberta máxima para quem
lê) simplesmente Fluidez e Natureza, no sentido em que a natureza
das aves é voar sem ter de pedir prévia autorização para o fazer.
Num relance tudo é caótico, mas se
observarmos bem as coisas, há sempre uma ordem interna que pouca gente se dá
conta. Não é a mim, ao criador, que compete qualquer explicação. A mim só me
compete atirar pérolas, pedras, farpas, etc. Apanha-as quem as quiser, sempre
foi assim!
Como
vêem ainda não disse nada sobre o Pico e só falo de mim. Falar de mim (de qual
Eu?) é falar daquilo que conheço e entendo, é-me impossível escrever sobre
coisas e experiências que não são as minhas. Porquê? Porque eu não sou um
ficcionista, não tenho nenhuma ambição de escrever histórias para entreter a
malta. Interessa-me apenas escrever aquilo que passa por mim, mesmo que o que
passa seja muito simples, mesmo que seja uma mera aragem ou pincelada.
Interessa-me a beleza das pequenas, pequeníssimas coisas, talvez por isso me
tenho encantado com a variedade de vasos com flores por toda a ilha do Pico,
beleza em estado puro.
Como
podem ver, estou calmamente a desenrolar o novelo da ironia, talvez algum
sarcasmo. Não sou, devo dizê-lo, nem jornalista e, como já disse, nem
ficcionista. E o que sou? Sou um híbrido entre a escrita e a pintura, a minha
arte de eleição. “Híbrido” é uma palavra que por vezes sinto que ainda não
chegou aos Açores, é vista como uma ofensa, uma impureza que se deve evitar,
sobretudo pelos “homens de letras”. Essa designação de “homens de letras” é
sempre irónica, pelo menos quando usada por mim, é o reflexo de uma seita de
conservadores que pouco têm de facto a ver com o verdadeiro humanismo das
letras: Abertura, Pensamento e Liberdade.
Como
vêem, por momentos, até parece que estou a “me armar” para cima do Terry, não,
não estou. O Terry foi uma surpresa muito agradável desde que cheguei aos
Açores e ter estado com ele ao vivo no Finge
Azores Festival foi apenas a confirmação da imagem que eu já tinha dele,
não houve nenhuma linha ao lado daquilo que era a minha leitura à distância.
Terry é um lutador, um optimista nato que ressuscita qualquer morto, tem uma
energia contagiante. Houvesse um Terry por cada ilha e os Açores não seriam os
mesmos, haveria mais correntes de ar e circulação de ideias, mais Arte,
pensamento e menos mesquinhez, menos “açorianite aguda” e, claro, menos inveja.
Desde que regressei aos Açores (Agosto de
2020) tenho tirado notas e mais notas sobre o que vou observando por S. Miguel,
e embora conheça bem a realidade da ilha onde vivo, é sempre estranho descobrir
novas subtilezas, por vezes subtilezas nada glorificantes. Digo isso porque ter
ido ao Pico destruiu a minha ideia de unidade fechada de “Açores”, digo isso
para dizer algo muito óbvio: o Pico desconheço-o profundamente, mas foi Amor à
primeira vista. Não pude ficar indiferente, rendido mesmo, à sua beleza,
história e gentes, de uma amabilidade extrema. Para quem regressa a S. Miguel descrente
do ser humano como eu, encontrar estas pessoas é uma lufada de ar fresco, quero
dizer Esperança. E ocorre-me mais
outras duas palavras: resiliência e luta.
Ao contrário da minha geração, que faz
escala por aeroportos e se sente cosmopolita, esses “provincianos das cidades”,
eu sempre detestei aeroportos, e não acredito que se conhece um lugar em dois
dias ou mesmo uma semana. Impõe-se no imediato uma pergunta: Como condensar tantas impressões numa
página? Eu ainda não descobri a fórmula, eu no fundo também não quero
descobrir a fórmula. A fórmula tem de ser Nunca
ter fórmula. Não há pureza no texto, nos objetos, no “Eu”, no Mundo, todos nós
somos mistura de mil coisas diferentes. É isso que torna cada ser humano único
e especial. Qualquer açoriano devia ter em mente a hibridez. A riqueza dos
Açores é essa hibridez constante, basta, para isso, lembrar a imagem do
emigrante que regressa às ilhas, misturando no seu falar o inglês e português.
Escrevo
aqui sobretudo por amizade ao Terry, aos meus novos amigos do Pico e ao próprio
Pico. Digo isso – da não descoberta da fórmula - porque, ao contrário de muita
gente que escreve para os jornais das ilhas, e que tem fórmulas e soluções para
tudo, eu não estou interessado nem em fórmulas fixas, nem muito menos aparecer
página sim, página não. Nunca quis ser jornalista, comentador político ou
Presidente da junta. Normalmente quem o faz com alguma regularidade, sobretudo
nos Açores, nada de interessante tem a dizer, e esta é uma grande verdade. São
apenas, na sua maioria, um tique nervoso de uma perna que não para quieta, um
reflexo de ideias feitas, um mero espelho de coisas que nada acrescentam. Há os
jornalistas que informam, os políticos que fazem autopropaganda, os gramáticos
de (triste) elite (aborrecidíssimos de morte), os críticos empalhados que
escrevem elogios aos amigos e, entre tantas outras categorias, os escritores
que de facto são escritores e têm algo de interessante a dizer. Estes últimos
cada vez menos nos jornais açorianos.
Há muita gente a escrever, mas há também
muita gente que não lê nada, sobretudo livros que de facto interessam, livros
que vão para lá da mera ficção. Um livro de sociologia, história ou filosofia
dá mais a um escritor/ poeta do que três histórias locais da carochinha. Não
digo que a carochinha não é importante, o que digo é que a carochinha precisa
sair da sua zona de conforto, ela precisa crescer com aquilo que pode ver ao
redor de si e também ao longe. Falta nas ilhas ver a distância, ver o além
horizonte, quer a outra ilha do lado, diria mesmo ver o continente do lado, o próprio
Mundo. A qualidade, seja ela qual for, tem de ser resultado de um equilíbrio
daquilo que temos e podemos valorizar, com aquilo que podemos ver à distância ou
(re)adaptar. Nesse sentido, o Fringe
Azores Festival tem feito muito pelos Açores ao permitir contacto de
artistas tão diversificados e distantes.
Sobre o Pico, essa ilha fabulosa, deixo
apenas como indícios uma lista de coisas que merecem ser recordadas: a
recordação da sandália de Empédocles à chegada; a sarça da montanha criada pelo Terry; a lágrima do drama do milho; a bondade despojada; a mais
negra e profunda pedra - Malevitch, Hartung, Kline, Soulages ecoando através da
lava; a beleza da poesia tradicional; o valor etnográfico da amizade; a
esperança; a negrura da gruta versus a luz do convívio; S. Jorge ao fundo; vasos
com flores e plantas por todo o lado; o majestoso Lagido – um renovado final para
Fausto de Sokurov; Casas escuras com
portas e janelas vermelhas; afinidades e diferenças entre gerações; os moinhos
de vento à La Quixote; a Rodilha;
Sorrisos de pedra em corações de amor; rivalidades (estúpidas) entre ilhas; a
esperança numa ilha melhor; etc…
A tudo isto voltarei com mais tempo e como
deve ser: sem pressas. Na era da pressa e do consumo rápido devemos (todos)
fazer exatamente o contrário: sermos Lentos!
As ilhas precisam de mais intercâmbio, mais partilha, menos preconceitos e
menos rivalidades. A beleza está e sempre estará na diversidade, pluralidade. E
porque estou no Porto deixo um poema que encontrei numa rua: “Afundam a
cultura/ porque um povo culto/ não dará paz às/ elites”. Este “afundar”
metafórico é um convite sério a levar toda a cultura, por mais difícil que ela
seja (incluindo os Scully’s, os Griffa’s, os Richter’s que levo na mala para
S. Miguel), ao “povo”. Urge explicar, talvez de uma vez por todas, que
“Cultura” não é só o Beethoven e o Nemésio, e que a separação entre Alta e Baixa cultura é, hoje em dia, uma piada de decadentes e/ou penetras do Faial e não só!
A Arte pode ser difícil na sua essência, mas
a sua porta é sempre um convite ABERTO a TODOS. E dizer que a porta está aberta
não quer dizer que seja fácil lá entrar. A quem tiver forças e vontade: a
Montanha espera-vos.
Vítor
Teves
Porto,
27.06.21.
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