A
LILIPUTIANA
- em sete andamentos -
Qualquer semelhança com a
realidade não é pura ficção
- Raul Milhafre (n.1932)
I
Como
poderão ver, escrevo este texto com a ajuda de vinte e três citações de
filósofos franceses, e, como não poderia deixar de ser, com a ajuda de um Gin-Trópico [1º erro] com uma casquinha de
limão. Este gin nasceu-me fulgurantemente entre as mãos, tenho esta capacidade
de usar a ferocidade para fazer de uma simples bebida importada um verdadeiro valor
cultural. Compete-me, como unicórnio central da planície da Liliputiana,
separar aquilo que é cultura daquilo que não é. Do mesmo modo, esta minha bela
t-shirt dizendo I AM NOT A VAMPIRE I’ M JUST STUPID é um reflexo da etnografia
local, do espaço entre a AchaSardinha [2º erro] e a Sarga [3º erro]. Uma peça
extremamente delicada para ser importada ou exportada.
II
Esboço para as Causas da decadência
das tribos literárias da Liliputiana
Depois de um período áureo, a queda é sempre inevitável. Poderíamos
arranjar, para bode expiatório, um qualquer fulano, mas comecemos antes por
acusar duas palavras: a Magnitude,
por um lado, e a Implosão, por outro.
A primeira deve-se à natureza do génio: An-Tiro, Nemésy@ e Nathalé, pelas suas
naturezas, transformaram todos os seus contemporâneos e discípulos em
apontamentos para consumo secundário. Frente aos colossais autores é impossível
não achar que tudo já foi dito, é um facto! No que diz respeito à implosão,
esta, como todos sabemos, é inevitável quando não há renovação ou entrada recorrente
de novos ares. É o patamar onde nos encontramos, mais uma janela fechada, uma
que seja ordenada pelo Quadriunvirato - esses tampões da Ordem Superior - , e é
o colapso!
Se sou da opinião de
quem escreveu o parágrafo em cima? É claro que NÃO! Jamais em tempo algum. Sei
que as tribos literárias da Liliputiana preferem sempre um bode expiatório
real, um que seja um homem com dois braços e duas pernas, e, se possível, da
margem, mas, infelizmente, não consegui arranjar ainda nenhum tímido miúdo para
servir de vítima aos carniceiros. É sempre muito mais fácil queimar alguém a assumir
as culpas do nosso próprio falhanço enquanto mentores da renovação de uma nova
Era, não é verdade? O Quadriunvirato - Talbico, Urbu, Ozélim e Almê –, devia
ter aprendido a frase mais importante da Literatura: O futuro nunca é aquilo
que imaginamos ou apoiamos!
As reais causas da
decadência das tribos literárias são, sim, as novas comunicações, cada um está
preocupado com o seu umbigo e não com o vizinho do lado. E convenhamos, o
vizinho, além de chato, não escreve nada de muito criativo, não passa, regra
geral, da repetição da repetição da repetição. E quando não é isso, não
interessa porque simplesmente não interessa. A maioria dos textos é elogio político,
retórica mastigada (sempre confundida com a real literatura) e hinos ao turismo; sem esquecer, claro, as odes à divulgação ancestral da prática do surf.
E fora das tribos literárias o que
acontece? Ah, aí sim, a Literatura, com L maiúsculo, vai, efectivamente, de
vento em polpa, anda muito bem. O pauperismo nunca foi qualidade na sua
essência, mas, por vezes, é realmente qualidade! Basta um bom escritor, dois bons
escritores, três bons escritores e um provocador nato e chato para que tudo
seja realmente salvo. Bom, tudo não, alguma coisinha. Porquê? Porque quer
queiramos, quer não gostamos, é através deles que a real renovação e a
circulação de ar se fará.
III
Na Liliputiana, um dos mais antigos jogos
poéticos consiste em adivinhar de quem é o verdadeiro perfil na sombra: se Dom
Fuças, se Dr. Flash. A sombra, como todos nós sabemos, anda por estes dias
sobrevalorizada, por isso, quem for mais engolido pela sombra, mais valor
poético terá. O vencedor baterá todos os recordes de audiência no mercado negro
regional. Tendo em conta o odor da cidade, Dom Fuças vai em vantagem: não tem
fotografia no facebook, não partilha emoções digitais ou arrepios de praia. Há nele
toda uma encenação rigorosa, um ego em ebulição construído sobre a antiga e
decadente imagem de poeta. Para sermos mais precisos, uma representação da matemática
clássica: rigor, contenção e emoções programadas por robots neo-humanos.
Já o Dr. Flash, também ele na sombra, parece
estar muito na luz: não só é doutor (o que lhe aborrece de morte), como é
“Flash”, instante brilhante, luz que se liga e apaga. Para piorar a situação é
um amante da fotografia, dos registos diários que dão matéria inesgotável às
suas criações. Com tanta intermitência, tanta luz a acender e a apagar, não é difícil
perceber a irritação dos demais.
Se virmos o perfil pela direita, Dom Fuças é
uma vítima: o menino prodígio colhido ainda verdinho da árvore da vida, pela tardia
Academia do positivismo, anda desprotegido. Tadinho!
Não obstante os livros publicados, as entrevistas, os mimos do coletivo das
onças e os textos mui originais da
sua mesclagem, Dom Fuças é o filho direito do esquecimento. Oh injustiça milenar! Uma injustiça An-Tireana,
dizem alguns. Para esses o verdadeiro perfil, o perfil da real sombra, é o
grande Dom Fuças, o raio da matemática futura em C.
De um modo diferente, se em vez de olharmos
pela direita, olharmos pela esquerda, vemos que o Dr. Flash é o real esquecido,
o real ignorado, o amordaçado que, mesmo amordaçado, ainda grita. Oh, se grita!
Grita tão alto que todos fingem não o ouvir. Quem? Dizem alto. Alguns até se engasgam em vídeos de aniversário
dizendo: O papão! Salvem-me do papão!
Dr. Flash, por trabalhar de manhã à noite, é negro, daí andar constantemente
diluído na sua própria e larga sombra.
Como sempre, vai na República da
Liliputiana uma enorme, enorme confusão entre Aparência e Realidade, uma
que parece ser a mesmo da confusão entre Retórica
e Literatura. Estas duas palavras
nunca batem certo com os seus respetivos significados na Liliputiana. Todos nós
sabemos que ficar na aparência imediata é a mais confortável solução, é como
esticar os braços no sofá e bocejar.
No Concurso
Geral do Perfil na Sombra, do ano de 2020, ao contrário do que era habitual,
Dom Fuças e Dr. Flash encontraram-se empatados. Aquilo que era visto como um
real empate por muitos, era visto por outros como um embuste. Como era possível? O prodígio atirado a um
plinto brilhante, exposto no embuste? Oh
malvada injustiça. Não era possível, sobretudo depois de tantas esperanças.
Este empate teve por consequência a alteração do significado das palavras Mentira e Verdade: a verdade passou a mentira e a mentira passou a verdade.
Assim, o verdadeiro perfil na sombra oculta, a luz por vir, tinha de ser,
inevitavelmente, Dom Fuças. O empate nascera para durar eternamente, exatamente,
dois meses, três dias e seis horas.
Este empate do ano 2020 foi encarado por
alguns como a chegada definitiva ao ponto zero. O problema era que
identificavam o zero sempre com o vazio – o que na realidade não é bem verdade.
Se eles compreendessem o texto, já teriam visto, em tempos, a chegada ao ponto zero.
Saberão eles que o zero já se encontra em “Tomei nas minhas mãos a sombra
escura/ e embalei o silêncio nos meus ombros”?
Quando viramos a cabeça para o lado
esquerdo o cenário é bem diferente. Uns querem Dr. Flash na sombra, no
concurso primordial do talento poético. Mas a verdade é que o Dr. Flash dela
nunca saiu. Foi assim que, inseguro, colocou a cabeça de fora da cortina,
espreitou para o palco principal das sombras, e tanto meteu a cabeça que
rapidamente a retirou, sobretudo quando iam começar a tocar o hino da glória. Uma chatice! Disse Dr. Flash. Uma chatice ter de sair do meu quarto para
ouvir um banalíssimo hino coletivo!
O concurso das sombras, de 2020, viu
nascer o empate. A balança estava, finalmente, em equilíbrio: de um lado um perfil de sombra oficial; do outro lado um perfil ardente, um com espaços
cheio de gente de costas. Mas era esse, sim, que vivia, efetivamente, na
sombra, independentemente da variedade das suas fotos de verão no facebook.
IV
CONFIRMA-SE!
Maior o ego, Maior o assado!
-Raul
Milhafre
Dai-me senhor um renovado e
entufado
académico poeta
para
sem suar assar e torturar!!
V
O
falso cachalote era uma importação da metrópole, e, ao contrário do normal, não
era nem grande, nem gordo, isso seria um absurdo inconcebível entre o meio do Aqui-Toqui. Sempre que respondia, o
cachalote arrastava as últimas letras das palavras, assim um simples “Obrigado”
tornava-se num caquético tique de pseudo-ai-que-me-dói-a-espinha “Obrigaaaaadxxx”.
E porque o mundo anda à volta do Aqui-Toqui
(distorção ocular nível 8.7) é normal encontrarmos as mesmas soluções de Nova Iorque
penduradas na Liliputiana, ainda que com sessenta anos de atraso.
Do mesmo modo, confirma-se: as mudanças do Governo
Interino da Liliputiana tiveram por principal consequência a alteração nas
políticas galerísticas. Aquilo que pode parecer uma crítica, é, de facto, um
elogio. Há finalmente uma política de apoio aos jovens artistas. Sabemos que a
qualidade é sempre aquilo que define uma exposição, ainda que digam, as más
línguas, que tudo não passa de um favorecimento aos filhos de uma ou outra família
no poder ou com dinheiro. Eu nunca diria uma tal “barbaridadeeexx” porque a
pesquisa da pintura, enquanto pós-medium, é, finalmente, uma “relidadeeexx”.
Temos finalmente celofane brilhante, impressão digital sobre tela, suspensão de
duas linhas, cores que brilham no escuro e, claro, o imprescindível som e
projeção vídeo, tudo em um. É o Leve três
carcaças e pague uma! Para tão pindéricas soluções só consigo dizer UAU! E
perguntam-me: O que tem a ver o novo Governo Interino com a alteração dos
investimentos privados? Tudo, literalmente, tudo!
Desde
o último ReiBelo que a ilha não via tão altos e eloquentes talentos. ReiBelo
teve, como todos sabemos, o apoio inestimável dos Condes de Allquêque para estudar em Paris, mas hoje em dia os
apoios na Liliputiana são muito contidos, mais subtis, consistem em enviar
links de doutoramento de Coimbra, são uma forma de dizer: "tira
doutoramento e aí dar-te-ei ouvidos”. Isso porque toda a gente sabe, a
inteligência é apenas uma importação da metrópole que nasce depois do
doutoramento e nada mais, não é algo que se encontre na Liliputiana. Se soubesse
dos reais meandros da Academia - da sua falta de originalidade e de pensamento -
fugiria o Senhor Allquêque II, como o diabo da cruz, da Academia! Aos ricos, aos que
fazem um semestre em pincelada em Berlim e Nova Iorque (meras marcações de
ponto) dão-se nozes, aos outros, links de encher chouriços.
Mas voltemos ao cachalote importado, uma maravilha da matilha, um belo exemplar da distinção entre o vazio 1.1 do vazio -1.-1.-1. Produto elevado das práticas curatoriais do hipercapitalismo oco, cujo uso excessivo da palavra Pensamento nunca é, de facto, real pensamento. Mas, para que não julguem que tudo é mau na República da Liliputiana, há finalmente bons ares a rodopiar as galerias altas do Centro de Arte Contemporânea. Nele podemos finalmente respirar e todos são convidados! Bom, todos, todos, não! Todos exceto a cidade que o abriga! Um passo largo para dar pela criança que gatinha.
VI
ARES DO NORTE
Em memória de
Maria de Fátima Borges (1943-2020)
Escritora da Ribeira
Grande
O deus da
coragem e da guerra
partilhava com os homens
do norte a aragem fria
da resiliência.
Para essa Esparta
do norte da ilha
a honra não era moeda
de troca muito menos
capricho a ser usado
nos fracos saraus
do bafo.
E morta a rainha
do seu lar Borges de
Fátima o seu nome
o Rei era novo
e renovado:
Um duro casmurro
inquebrável Ares!
VII
Calar a boca? Mas
se nem em frente ao Rei calei a boca, era em frente ao Capitão do Donatário 4.2
que o iria fazer? Por ordem da Rainha, Dona poesia, eu, carrasco-mor, executo a
ordem: torturar-vos até à morte nesta paisagem mutável. E se disserem o
contrário sobre a paisagem estarão, como sempre, apenas agarrados à Aparência das Cousas.
Vítor Teves
Torre de Londres, 6 de julho de 1535
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